este post, analiso o interessante trecho do livro do zoólogo Desmond Morris, "O Macaco Nu", a respeito da nossa suposta necessidad...
este post, analiso o interessante trecho do livro do zoólogo Desmond Morris, "O Macaco Nu", a respeito da nossa suposta necessidade ancestral de religião e deus.
Mas a parte que nos interessa do livro, é a que procura explicar as funções sociais da religião e as origens da necessidade de um deus. Morris vai longe, até começo da vida em sociedade das primeiras aglomerações humanas, para tentar elucidar esse estranho comportamento.
O autor afirma em seu trabalho, que "em sentido comportamental, as atividades religiosas consistem na reunião
de grandes grupos de pessoas que executam longas e repetidas exibições
de submissão, no intuito de apaziguar o indivíduo dominante." Dependendo do tipo de cultura, este indivíduo dominante é retratado de diferentes maneiras, podendo tomar a forma de um ser de outra espécie, ou de um ancião e sábio da mesma espécie. Eis como Morris descreve a veneração que se pratica a esta figura:
"As respostas submissas que lhe são oferecidas podem consistir em fechar
os olhos, baixar a cabeça, pôr as mãos em atitude de súplica, ajoelhar,
beijar o solo, ou mesmo chegar à prostração extrema, frequentemente
acompanhada de vocalizações de lamento ou de cânticos. Se esses atos de
submissão são bem sucedidos, o indivíduo dominante acalma-se. Como
mantém enormes poderes, as cerimônias de apaziguamento têm de ser
praticadas a intervalos regulares e frequentes, para impedir que o
dominador volte a sentir-se irado. Em regra, mas não sempre, o indivíduo
dominante é chamado um “deus”."
A partir de então, o autor traça um paralelo entre este comportamento tipicamente religioso e as origens ancestrais do Homem, para demonstrar por que estes "deuses", que nunca existiram em forma corpórea, tiveram que ser inventados:
"Antes de nos termos tornado caçadores cooperantes, devemos ter vivido em
grupos sociais semelhantes aos que ainda hoje se veem em outras
espécies de macacos e símios. Nos casos típicos, cada grupo é dominado
por um só macho. Este é ao mesmo tempo patrão e senhor todo-poderoso e
cada membro do grupo tem de apaziguá-lo ou sofrer as consequências. O
chefe é também o membro mais ativo na proteção do grupo contra os
perigos exteriores e no ajuste de contendas entre os restantes membros.
Durante toda a vida, cada membro do grupo gira à volta do animal
dominante. O seu papel de detentor de poder absoluto dá-lhe uma posição
semelhante à de um deus."
Entretanto, Morris explica que a necessidade de cooperação dos nossos primeiros ancestrais, quando tornaram-se caçadores, ajudou a limitar o poder do macho dominante. Os membros do grupo não deviam mais temê-lo, e sim cooperar com ele para uma caçada bem sucedida. "Para isso, o chefe tinha de ser cada vez mais como 'um dos outros'". Mas este fator gerou um problema: o desaparecimento da figura-chave de um ser que precisava ser temido e venerado. Eis como o autor afirma que o problema foi então solucionado:
"Devido aos nossos antecedentes, conservamos a necessidade de uma figura
todo-poderosa que mantivesse o grupo sob um certo controle, e a vaga
foi preenchida com a invenção de um deus. Dessa forma, a influência da
figura-deus inventada podia funcionar como uma força complementar da
influência progressivamente decrescente do chefe do grupo. À primeira
vista, surpreende como a religião tem tido tanto sucesso, mas o seu
enorme poder nos dá apenas a medida da força da nossa tendência
biológica fundamental, herdada diretamente dos macacos e símios nossos
antepassados, para nos submetermos a um membro do grupo dominador e
todo-poderoso."
É esta a razão, segundo Morris, da nossa suposta necessidade de "acreditar em alguma coisa". Seria por conta de uma herança comportamental trazida desde os tempos remotos, onde o bando temia e respeitava a figura do macho-alfa. Com o desenvolvimento da espécie humana, o macho dominante passou a ser mais cooperativo e menos temido, mas a necessidade de submissão foi a chave para a criação das religiões e de deuses.
Eu, particularmente, não concordo com o autor quando ele afirma que temos a ancestral necessidade de acreditar em alguma coisa. No meu modo de entender, a historicidade do culto religioso está muito mais vinculada às características da vida na civilização, que nos impuseram durante séculos a prática e conduta religiosas como forma de controle social e comportamento padrão, do que a uma ancestral necessidade de submissão - uma evidência além de tudo, de difícil comprovação. O fato de certos grupos temerem uma figura todo-poderosa está muito mais vinculado ao medo alimentado por padres e sacerdotes do que a uma necessidade biológica. Além do mais, devemos salientar que desde o Iluminismo, quando os Estados do mundo ocidental se tornam laicos, muitas e muitas pessoas simplesmente se sentiram livres para finalmente se declararem descrentes (aqui eu ressalto que me refiro a descrença em deuses e seres sobrenaturais), e portanto, prova desta falta de necessidade.
Mas é preciso afirmar a originalidade da conclusão de Desmond Morris no capítulo do seu livro até aqui comentado. Apesar de dizer que sentimos a necessidade de acreditar em alguma coisa e que só nos mantemos unidos e controlados se temos uma crença comum, ele diz no entanto que "nesse sentido, poderia afirmar-se que qualquer crença serve, desde que seja suficientemente poderosa". Baseados na análise final do autor, podemos destacar dois tipos de crenças possíveis: aquelas que limitam a capacidade e o pleno desenvolvimento humano (eu colocaria a religião e a crença cega em deus enquadrados neste tipo) e aquela que ajuda o homem a crescer e a se desenvolver (e aqui eu colocaria a ciência, com a devida ressalva de que não se trata de dizer que a ciência seja questão de crença, mas sim no sentido de opção de busca por conhecimento). Nas palavras do autor:
"Acontece ainda que certos tipos de crença são mais prejudiciais e
estupidificantes do que outros, podendo mesmo desviar uma comunidade
para tipos de comportamento rígidos que impeçam o respectivo
desenvolvimento qualitativo. [Por outro lado], como espécie, somos um animal
predominantemente inteligente e explorador, e todas as crenças baseadas
nesse fato são-nos extremamente benéficas."
Só não concordo com o autor quando ele afirma, muito otimista, que a "crença" baseada no nosso lado "inteligente e explorador" vem se transformando na "'religião' do nosso tempo", ou seja, substituindo gradativamente a tradicional forma de crença religiosa. Muito pelo contrário, a ciência e o conhecimento científico já experimentaram dias melhores. Hoje ela sofre ataques tanto com o avanço do paradigma pós-moderno, quanto com o crescente fundamentalismo religioso no mundo, e até no Brasil. Os últimos debates presidenciais baseados na questão do aborto, na sexualidade e nos ataques difamatórios contra a candidata supostamente ateia, não me deixam mentir.
Fonte: O Macaco Nu. Ed. Record, pp. 140-3
Desmond Morris
Desmond Morris é um dos mais destacados e polêmicos etólogos e zoólogos britânicos. Suas análises comportamentais humanas, baseadas quase que exclusivamente nas características animais do Homem são, ao certo, o ponto-chave das maiores polêmicas que causa. Assim foi em 1967, quando lançou o livro "O Macaco Nu" (The Naked Ape), relançado no Brasil pela Record em 2004. Neste trabalho, Morris se propõe a analisar o Homem do ponto de vista da Etologia, colocando-o no mesmo patamar dos outros animais, especialmente os macacos e os símios, para fazer uma analise comparativa comportamental. Mas a parte que nos interessa do livro, é a que procura explicar as funções sociais da religião e as origens da necessidade de um deus. Morris vai longe, até começo da vida em sociedade das primeiras aglomerações humanas, para tentar elucidar esse estranho comportamento.
O autor afirma em seu trabalho, que "em sentido comportamental, as atividades religiosas consistem na reunião
de grandes grupos de pessoas que executam longas e repetidas exibições
de submissão, no intuito de apaziguar o indivíduo dominante." Dependendo do tipo de cultura, este indivíduo dominante é retratado de diferentes maneiras, podendo tomar a forma de um ser de outra espécie, ou de um ancião e sábio da mesma espécie. Eis como Morris descreve a veneração que se pratica a esta figura:
"As respostas submissas que lhe são oferecidas podem consistir em fechar
os olhos, baixar a cabeça, pôr as mãos em atitude de súplica, ajoelhar,
beijar o solo, ou mesmo chegar à prostração extrema, frequentemente
acompanhada de vocalizações de lamento ou de cânticos. Se esses atos de
submissão são bem sucedidos, o indivíduo dominante acalma-se. Como
mantém enormes poderes, as cerimônias de apaziguamento têm de ser
praticadas a intervalos regulares e frequentes, para impedir que o
dominador volte a sentir-se irado. Em regra, mas não sempre, o indivíduo
dominante é chamado um “deus”."
A partir de então, o autor traça um paralelo entre este comportamento tipicamente religioso e as origens ancestrais do Homem, para demonstrar por que estes "deuses", que nunca existiram em forma corpórea, tiveram que ser inventados:
"Antes de nos termos tornado caçadores cooperantes, devemos ter vivido em
grupos sociais semelhantes aos que ainda hoje se veem em outras
espécies de macacos e símios. Nos casos típicos, cada grupo é dominado
por um só macho. Este é ao mesmo tempo patrão e senhor todo-poderoso e
cada membro do grupo tem de apaziguá-lo ou sofrer as consequências. O
chefe é também o membro mais ativo na proteção do grupo contra os
perigos exteriores e no ajuste de contendas entre os restantes membros.
Durante toda a vida, cada membro do grupo gira à volta do animal
dominante. O seu papel de detentor de poder absoluto dá-lhe uma posição
semelhante à de um deus."
Entretanto, Morris explica que a necessidade de cooperação dos nossos primeiros ancestrais, quando tornaram-se caçadores, ajudou a limitar o poder do macho dominante. Os membros do grupo não deviam mais temê-lo, e sim cooperar com ele para uma caçada bem sucedida. "Para isso, o chefe tinha de ser cada vez mais como 'um dos outros'". Mas este fator gerou um problema: o desaparecimento da figura-chave de um ser que precisava ser temido e venerado. Eis como o autor afirma que o problema foi então solucionado:
"Devido aos nossos antecedentes, conservamos a necessidade de uma figura
todo-poderosa que mantivesse o grupo sob um certo controle, e a vaga
foi preenchida com a invenção de um deus. Dessa forma, a influência da
figura-deus inventada podia funcionar como uma força complementar da
influência progressivamente decrescente do chefe do grupo. À primeira
vista, surpreende como a religião tem tido tanto sucesso, mas o seu
enorme poder nos dá apenas a medida da força da nossa tendência
biológica fundamental, herdada diretamente dos macacos e símios nossos
antepassados, para nos submetermos a um membro do grupo dominador e
todo-poderoso."
É esta a razão, segundo Morris, da nossa suposta necessidade de "acreditar em alguma coisa". Seria por conta de uma herança comportamental trazida desde os tempos remotos, onde o bando temia e respeitava a figura do macho-alfa. Com o desenvolvimento da espécie humana, o macho dominante passou a ser mais cooperativo e menos temido, mas a necessidade de submissão foi a chave para a criação das religiões e de deuses.
Eu, particularmente, não concordo com o autor quando ele afirma que temos a ancestral necessidade de acreditar em alguma coisa. No meu modo de entender, a historicidade do culto religioso está muito mais vinculada às características da vida na civilização, que nos impuseram durante séculos a prática e conduta religiosas como forma de controle social e comportamento padrão, do que a uma ancestral necessidade de submissão - uma evidência além de tudo, de difícil comprovação. O fato de certos grupos temerem uma figura todo-poderosa está muito mais vinculado ao medo alimentado por padres e sacerdotes do que a uma necessidade biológica. Além do mais, devemos salientar que desde o Iluminismo, quando os Estados do mundo ocidental se tornam laicos, muitas e muitas pessoas simplesmente se sentiram livres para finalmente se declararem descrentes (aqui eu ressalto que me refiro a descrença em deuses e seres sobrenaturais), e portanto, prova desta falta de necessidade.
Mas é preciso afirmar a originalidade da conclusão de Desmond Morris no capítulo do seu livro até aqui comentado. Apesar de dizer que sentimos a necessidade de acreditar em alguma coisa e que só nos mantemos unidos e controlados se temos uma crença comum, ele diz no entanto que "nesse sentido, poderia afirmar-se que qualquer crença serve, desde que seja suficientemente poderosa". Baseados na análise final do autor, podemos destacar dois tipos de crenças possíveis: aquelas que limitam a capacidade e o pleno desenvolvimento humano (eu colocaria a religião e a crença cega em deus enquadrados neste tipo) e aquela que ajuda o homem a crescer e a se desenvolver (e aqui eu colocaria a ciência, com a devida ressalva de que não se trata de dizer que a ciência seja questão de crença, mas sim no sentido de opção de busca por conhecimento). Nas palavras do autor:
"Acontece ainda que certos tipos de crença são mais prejudiciais e
estupidificantes do que outros, podendo mesmo desviar uma comunidade
para tipos de comportamento rígidos que impeçam o respectivo
desenvolvimento qualitativo. [Por outro lado], como espécie, somos um animal
predominantemente inteligente e explorador, e todas as crenças baseadas
nesse fato são-nos extremamente benéficas."
Só não concordo com o autor quando ele afirma, muito otimista, que a "crença" baseada no nosso lado "inteligente e explorador" vem se transformando na "'religião' do nosso tempo", ou seja, substituindo gradativamente a tradicional forma de crença religiosa. Muito pelo contrário, a ciência e o conhecimento científico já experimentaram dias melhores. Hoje ela sofre ataques tanto com o avanço do paradigma pós-moderno, quanto com o crescente fundamentalismo religioso no mundo, e até no Brasil. Os últimos debates presidenciais baseados na questão do aborto, na sexualidade e nos ataques difamatórios contra a candidata supostamente ateia, não me deixam mentir.
Fonte: O Macaco Nu. Ed. Record, pp. 140-3