Muitas pessoas acham que, quando eu afirmo que a ciência e as religiões dogmáticas como a cristã ou a muçulmana não podem andar juntas, d...
Muitas pessoas acham que, quando eu afirmo que a ciência e as religiões dogmáticas como a cristã ou a muçulmana não podem andar juntas, devido a uma série de pontos inconciliáveis entre elas, estou apenas exprimindo um ponto de vista ateu, e que os religiosos pensam diferente, que é sim possível conciliar as duas formas de pensamento. Talvez conhecendo o caso particular de um religioso intelectualmente honesto consigo mesmo, elas parem para refletir melhor.
Muitos religiosos atualmente preferem não tocar em certos assuntos delicados da Bíblia, porque são temas que, embora tenham sido levados a sério durante séculos a fio, hoje causam constrangimentos devido ao avanço do conhecimento científico, que jogou por terra afirmações como a suposta idade jovem da Terra, por exemplo. Muitos conseguem viver escondendo estes conflitos, tratando estes assuntos da Bíblia como alegóricos ou tentando uma desonesta conciliação; mas outros, realmente entram em parafuso com tais contradições e decidem escolher um lado em que acreditar, descartando o outro. Foi o caso de Kurt Wise, geólogo americano que hoje dirige o Creation Research Center at Truett-McConnell College, uma faculdade privada de ensino cristão. Wise se formou em Harvard e na Universidade de Chicago e era um jovem cientista de futuro promissor, que andava a passos largos rumo ao sucesso na carreira acadêmica.
Aí veio a tragédia. Ela veio não do exterior, mas de dentro da própria cabeça dele, uma cabeça fatalmente subvertida e enfraquecida por uma criação religiosa fundamentalista, que exigia que ele acreditasse que a Terra – objeto de seus estudos científicos em Harvard e Chicago – tinha menos de 10 mil anos de idade. Ele era inteligente demais para não reconhecer a colisão frontal entre sua religião e sua ciência, e o conflito mental o deixou cada vez mais desconfortável. Um dia, sem conseguir suportar mais a tensão, atacou o problema com uma tesoura. Pegou uma Bíblia e a percorreu, retirando, literalmente, todos os versos que teriam que ser eliminados se a visão científica do mundo fosse verdadeira. No final deste exercício honesto e trabalhoso, sobrou tão pouco da Bíblia que ele disse:
Por mais que eu tentasse, e mesmo com o benefício das margens intactas ao longo das páginas das Escrituras, vi que era impossível pegar a Bíblia sem que ela se partisse ao meio. Tive de tomar uma decisão entre a Evolução e as Escrituras. Ou as Escrituras eram verdade e a Evolução estava errada, ou a Evolução era verdade e eu tinha de jogar a Bíblia fora [...] Foi ali, naquela noite, que aceitei a Palavra de Deus e rejeitei tudo que a contradissesse, incluindo a Evolução. Assim, com grande tristeza, lancei ao fogo todos os meus sonhos e as minhas esperanças na ciência.
Sim, eu sei, eu também pensei “bastava ter jogado a Bíblia no lixo!”. Algumas pessoas acham a atitude de Kurt Wise patética, mas eu devo lhe dar parabéns. Considero mais honesto você reconhecer que ciência e religião não se misturam, do que tentar arrumar teses mirabolantes ou malabarismos intelectuais para mostrar que elas podem andar juntas. E nem me venham dizer aquele velho argumento defensivo de que “a Bíblia não é um livro de ciências”. Pois seus dogmas avançam sim em questões como geologia, biologia, história, moral, genética, psicologia, com ensinamentos totalmente errados para os padrões do século XXI. Portanto, se você é daqueles que acham que ciência e religião andam de mãos dadas, eu te convido a uma reflexão com base na experiência deste geólogo que largou uma brilhante carreira de cientista por constatar justamente o contrário do que você pensa. Ele preferiu ser honesto com sua consciência.
Fonte: DAWKINS, Richard. Deus, um delírio. Companhia das Letras. São Paulo: 2006. (pp. 365-66)