Fazia tempo que eu não trazia aqui no Rama nenhum problema ético/filosófico proposto por Martin Cohen. Esse é para nos fazer pensar bastante...
Fazia tempo que eu não trazia aqui no Rama nenhum problema ético/filosófico proposto por Martin Cohen. Esse é para nos fazer pensar bastante, porque é relativo aos limites éticos que os médicos devem ter para salvar uma vida ou não, e que tem reflexos na questão do aborto. Vamos a estória.
Tônia Castanha estava caminhando na beira da estrada quando é atropelada por uma caminhonete, deixada inconsciente na pista. Depois de alguns dias, ela acorda e descobre que está no leito de um hospital. Ela sente-se agradecida, teve sorte em sobreviver. Ela percebe que está ligada por fios a diversos aparelhos médicos, mas não liga, provavelmente seu caso tinha sido grave e ela ainda estava se recuperando.
Passados vários dias, ela se sente totalmente recuperada, mas notou que os mesmos fios ainda estavam lá. Confusa, ela tenta se livrar de alguns deles, quando os médicos chegam correndo e obrigam-na a desistir. “Dona Castanha”, dizem, com firmeza, “não faça isso, estamos usando seus rins para sustentar o paciente da cama ao lado, cujos rins pifaram assim que a senhora chegou”.
Tônia alega que deveria ter sido dada a sua permissão, mas os médicos explicaram que quando precisaram tomar uma decisão, Tônia estava inconsciente e o caso não podia esperar. Valia a pena salvar uma vida, eles diziam.
Mas Tônia estava indignada. “Isso é um abuso”, dizia ela, “e eu insisto em reaver o pleno uso do meu corpo!”. Os médicos se entreolharam e explicaram que o paciente era um famoso biotecnicista que estava desenvolvendo um novo tipo de cereal mais barato que ia salvar milhões de famintos no mundo. Mas nem assim ela se sensibilizou.
Tônia deve ser livrada dos aparelhos mesmo que o outro paciente morra?
Neste momento surge uma enfermeira idosa que intervém: “Realmente Dona Castanha, sua atitude é ridícula. A inconveniência que a senhora alega não desrespeita nenhum ‘direito fundamental’ que a senhora, como mulher, deveria saber como ninguém”.
“O que a senhora quer dizer?”, pergunta Tônia, embaraçada e contendo um pouco a sua revolta.
“Ora”, diz a enfermeira, “o que lhe é inconveniente é uma coisa que qualquer mulher, ao esperar um filho, tem que enfrentar: ela tem que emprestar seu corpo, até durante muito mais tempo, para ajudar a criança que ainda não nasceu, e a senhora com certeza não considera isso uma inconveniência absurda”.
“Sim, eu aceitaria isso, se acontecesse”, diz Tônia, meio confusa.
“Mesmo, Dona Castanha, se a criança não tivesse sido planejada, ou fosse fruto de um estupro?”, perguntou a enfermeira.
“Sim, mesmo assim”, diz Tônia, lembrando que sempre fora contra o aborto. Mas ainda assim não conseguiu ver similitude entre as hipóteses narradas pela enfermeira e o caso real que estava vivendo. Os médicos então decidem sedá-la. Tônia grita e luta, mas os médicos lhe dão uma injeção que a mantém inconsciente pelas próximas cinco semanas e meia.
Depois desse tempo, ela acorda; então lhe contam o que aconteceu e que ela agora está livre para ir embora. Ao se lembrar da sua reação, ela sente muita vergonha e agradece aos médicos pelo que fizeram. Inclusive manda um buquê de flores para o biotecnicista.
Mas afinal de contas, os médicos fizeram a coisa certa?
Extraído e adaptado de COHEN, Martin. 101 problemas de filosofia. São Paulo: Loyola, 2006. (pp.133-136)