Ubuntu é um sistema de valores praticados em muitos países da África. Define o humano, enquanto ser, conforme sua interação com outras pe...
Ubuntu é um sistema de valores praticados em muitos países da África. Define o humano, enquanto ser, conforme sua interação com outras pessoas, propondo assim uma irmandade universal. Suas lições de grande valor humanístico deveriam ser conhecidas e praticadas por todos nós, que vivemos numa sociedade egoísta e desigual.
O grande Desmond Tutu, uma das figuras mais importantes na luta contra o Apartheid ao lado de Nelson Mandela, em seu livro No Future Without Forgiveness, diz: “Ubuntu é muito difícil de traduzir para uma língua ocidental ... Quer dizer: ‘Minha humanidade está presa, está indissoluvelmente ligada, no que é seu.’”
Existe uma estória atribuída à ideologia Ubuntu que circula na internet, cuja autenticidade é difícil de comprovar, atribuída à filósofa Lia Diskin, mas que, no entanto, contém um grande ensinamento para que nós, ocidentais inseridos no mundo do consumismo e da competição, reflitamos a respeito.
Um antropólogo estava estudando os usos e costumes da tribo e, quando terminou seu trabalho, teve que esperar pelo transporte que o levaria até o aeroporto de volta pra casa. Como tinha muito tempo ainda até o embarque, ele então propôs uma brincadeira para as crianças, que achou ser inofensiva.Comprou uma porção de doces e guloseimas na cidade, botou tudo num cesto bem bonito com laço de fita e tudo e colocou debaixo de uma árvore. Aí, ele chamou as crianças e combinou que quando ele dissesse "já!", elas deveriam sair correndo até o cesto e a que chegasse primeiro ganharia todos os doces que estavam lá dentro. As crianças se posicionaram na linha demarcatória que ele desenhou no chão e esperaram pelo sinal combinado. Quando ele disse "Já!", instantaneamente, todas as crianças se deram as mãos e saíram correndo em direção à árvore como cesto. Chegando lá, começaram a distribuir os doces entre si e os comerem felizes.O antropólogo foi ao encontro delas e perguntou por que elas tinham ido todas juntas, se uma só poderia ficar com tudo que havia no cesto e, assim, ganhar muito mais doces. Elas simplesmente responderam: "Ubuntu, tio. Como uma de nós poderia ficar feliz se todas as outras estivessem tristes?" Ele ficou pasmo. Meses e meses trabalhando nisso, estudando a tribo e ainda não havia compreendido, de verdade, a essência daquele povo... Ou jamais teria proposto uma competição, certo?
Muitas vezes trabalhamos em cima de uma ideia ou de uma convicção tão obsessivamente, para "ajudar" aqueles que consideramos "carentes" ou para mudar os "inferiores" e não percebemos que eles têm o mesmo valor que nós. E até nos surpreendem, muitas vezes, com seu sentido ético e sua maneira de se relacionarem. Falta ainda um pouco mais de tempo para compreendermos que não existe tal coisa como uma hierarquia cultural, ou seja, expressões culturais boas e más, certas ou erradas. Na ação de cada gesto ou na consideração que fazemos do “outro,” só conseguimos olhar para o próprio umbigo e frequentemente nos vermos como modelo e referencial. Olhamos as outras manifestações culturais, outros valores, outras práticas sociais pelo nosso prisma, com os valores da nossa cultura. A isso a Sociologia e a Psicologia chamam de "etnocentrismo". Ubuntu significa: Sou quem sou, por quem somos todos nós.
Tantas são as lições nessa simples estória que valeria a pena falar um pouco sobre algumas delas. Primeira e mais óbvia, é o nosso sentimento de superioridade cultural, claro. Achamos que nossas sociedades industrializadas são o auge da civilização, o topo da escala evolutiva do homem. Sabemos que estas teorias hoje já não valem nada. Tribos indígenas e africanas, por exemplo, são tão bem sucedidas quanto as ditas civilizadas.
Segunda, a brincadeira que o antropólogo fez com as crianças mostrou um exemplo do que é nossa sociedade, em comparação com as consideradas "primitivas": somos egoístas; mesquinhos; competitivos no pior sentido da palavra; estimulamos a má rivalidade, e não a rivalidade criativa; a ganância; a "corrida ao pote de ouro", enquanto que as sociedades tribais — sem ter aqui a menor visão romântica das coisas — são cooperativas, solidárias, igualitárias na maior parte do tempo.
Até a pessoa mais distraída já deve ter percebido a razão dessa diferença: as tribos ditas "primitivas" não praticam o capitalismo.
Terceira, é bom chamar a atenção para um detalhe no texto: a ideia de ajudar os carentes. É o seguinte: o rico, a socialite, frequentadores dos altos círculos sociais, de alguma forma (geralmente de maneira não muito lícita) conseguem acumular muito mais do que precisam ou conseguiriam gastar. Pra ficar bem na foto perante a sociedade, aparecem fazendo caridade ao lado dos pobres, fazendo doações, trabalhando com voluntariado, filantropia... Esse paliativo serve muito mais para a imagem pessoal deles, do que para resolver o verdadeiro problema no seu cerne, que é: não deveria haver pessoas com tanto e outras com tão pouco. E antes que venham aqui dizer aquelas explicações de sempre, isso não tem absolutamente nada a ver com o talento ou o trabalho pessoal de cada um. Isso tem a ver com pertencer ou não pertencer a determinado meio, onde as oportunidades sempre aparecem, porque seu pai conhece o dono da empresa tal, que é casado com a mulher do desembargador tal, que por sua vez é sócia do engenheiro tal... De modos que as portas sempre se abrem facilmente para este grupo. São estas lições que devem ser aprendidas, para que a gente possa tirar a venda dos olhos e enxergar a nossa sociedade tal como ela é.