A famosa cozinha mineira, na verdade, é paulista

A cozinha mineira ganhou fama nacional e até internacional por conta da sua comida “típica”, louvada em livros e decantada em poesias, certo...

A cozinha mineira ganhou fama nacional e até internacional por conta da sua comida “típica”, louvada em livros e decantada em poesias, certo? Há controvérsias... Em 1985, os mineiros se valeram de pesquisas e poesias antigas para afirmar como seu patrimônio a culinária do Centro e do Sudeste do Brasil. Muitos mineiros então influentes na política nacional – capitaneados por Tancredo Neves – lançaram o projeto “Broa de Milho”, visando estudar a culinária brasileira. Mas apesar dessa intenção, história da cozinha mineira é, na verdade, a história da culinária paulista, como veremos.

Carne suína, feijão e milho

“Pela madrugada, iniciando o dia, o menino armava a trempe e acendia o fogo. Punha o toicinho para fritar na panela. O caldeirão vinha do outro fogo, com feijão cozido (…). Frito o torresmo, era retirado. Repartia a gordura, colocava sal com alho, fritava, pegava o torresmo com a colher, punha no caldeirão de feijão, bem amassado com farinha. Era o 'virado', que se usava engolir com o café pelo meio”

Uma cena mineira? Parece, mas não é. “Virado”, ou “Tutu”, é paulista, e o episódio acima foi colhido em depoimentos de velhos caipiras da região de Taubaté, por Tom Maia e Tereza Regina Maia em O Folclore das Tropas, Tropeiros e Cargueiros do Vale do Paraíba. Costumes que remetem ao passado bandeirante dos paulistas.

Mas e o lombo de porco com tutu? Esse sim, mineiro? Na verdade, também não...

Desde o século XVI a Capitania de São Vicente tinha no “virado” de feijão sua alimentação básica. Dados ao bandeirismo devido aos poucos recursos naturais da sua região, precisavam de um alimento de fácil transporte: o “virado”, ou “farnel”, com farinha de mandioca ou de milho, já continha alguma carne desfiada para acompanhar, de porco ou de galinha.

Os paulistas, desde os tempos remotos da capitania já eram criadores desses animais. Durante o bandeirismo, uniam-se com as indígenas que encontravam e assimilaram a sua culinária, com feijão, milho, mandioca, para criar a sua própria. Já no início do século XVII, os paulistas estabelecidos em pequenas propriedades pelo interior do sertão tinham como alimentação o que se conhecia então como “comida caipira”, que mais tarde passou a ser a “cozinha mineira”.

Outras comidas “típicas” mineiras também têm sua origem nos bandeirantes paulistas. A canjiquinha, feita de milho triturado (não moído em pó) com costelinhas de porco cozidas, já era consumida pelos paulistas do Setecentos. E a tradicional linguicinha caseira de Minas? Paulista também? Paulista também! Otoniel Moura, no seu Do Rancho ao Palácio, afirma, sobre os paulistas do século XVII: “A carne de porco era tanta que a linguiça se vendia às varas. Belos tempos!”

Como a culinária paulista chegou em Minas

Os bandeirantes paulistas, depois de quase um século de caça, matança e escravização de índios, resolveram mudar de “negócio”. Com o apoio da Coroa portuguesa, no final do século XVII, foram procurar riquezas minerais pelo sertão. A expedição de Fernão Dias partiu de São Paulo em 1674 e alcançou o norte de Minas, explorando os sertões mineiros. Em 1693, finalmente descobriram o ouro na região que durante 80 anos passou a ser produtora da maior quantidade do metal nas Américas até então.

A procura do ouro e da riqueza tirava braços da agricultura, e a escassez fazia o preço dos alimentos disparar. Logo ficou claro que vender comida era tão lucrativo quanto o trabalho de encontrar ouro. E os paulistas, naquele momento, eram os que tinham mais condições de fornecer alimentos para as nascentes cidades mineiras. Assim, São Paulo passou a ser o grande fornecedor de alimentos para as Minas Gerais, através de tropas de mulas e seus condutores – os “tropeiros” – cujo nome é a origem de um dos pratos mais tradicionais de Min.. quer dizer, de São Paulo... E consequentemente, influenciou o paladar da região mineira com suas tradições culinárias.

Durante os anos 80, a culinária mineira passou a ser difundida pelo país através dos restaurantes especializados. Entretanto, quando chegaram no interior de São Paulo, deram de cara com restaurantes locais que já serviam a mesma comida! A cozinha “caipira”, relegada a segundo plano pelo cosmopolitismo das elites paulistas, foi levada para Minas no final do século XVII e trazida de volta nos anos 80 pelos restaurantes mineiros, séculos depois.

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Fonte: Ricardo Maranhão, historiador, escritor e professor da PUC-SP para a Revista História Viva nº1, pp. 84-87.